16 de Setembro, 2013por Felícia Cabrita, fotografia de José Sérgio
No fundo da encosta, junto ao rio, um fenómeno estranho, só comparável ao estremecimento do inframundo: as chamas trepam, agarram-se rapidamente à textura do vale.O comandante de Castro Daire que pediu reforços faz o ponto da situação. Há 24 horas, tinham o incêndio, que rodeava duas aldeias, controlado. Fez-se o rescaldo, mas, de súbito, ele recuperou a virulência dos primeiros momentos. A sua equipa já desceu, pegou-lhe pelos cornos e tem como missão enfiar-lhe a cabeça no rio. Ao grupo de Márcia compete destruir-lhe o flanco esquerdo e juntarem-se ao primeiro.
Coelho saca da mangueira e Márcia engata-lhe a agulheta. Tira-se as medidas à descida vertiginosa. Ao fundo, o fogo dança como um pião ensandecido. A agulheta vai na frente e a bombeira sabe, por experiência própria, que de um momento para o outro, com uma guinada do vento, pode apanhar de caras. Eduardo vai nas suas costas, preparado para a amparar ao primeiro impulso da água quando começar a correr. Os outros seguem o chefe, pela linha de fogo que o encaixe de novos lances faz progredir.
A descer, todos os santos ajudam. Dizem. Márcia agradece a outros seres: “Este trabalho não se consegue fazer sem um bom comandante, que temos, espírito de equipa e confiança uns nos outros. É isso que nos dá força”. É das poucas lições que não se podem subverter. Na descida vertiginosa, não se vê um palmo à frente do focinho, umas vezes um pé atola-se na terra encharcada pelo primeiro rescaldo, outras procura-se uma laje para escapar da sucção da terra e escorrega-se.
Aproxima-se a boca do inferno, as labaredas espaventam com a aproximação e, de repente, a voz do comando manda subir. Com o fogo a querer enrolar-se aos pés, a equipa faz o caminho inverso. Márcia, que ia preparada para o agarrar pelo pescoço, não entende a contra-ordem, e o mau génio sobe como gasosa a rebentar no gelo: “Que é isto? Primeiro mandam-nos descer, agora chamam-nos ao ponto de partida?”.
Ninguém fica pelo caminho. Márcia troca a capa da fragilidade pela musculação de um gigante. Com a mão, empurra a novata pelas partes baixas até se sair do buraco.
A meio da encosta imunda de cinza e brasas, Luís Albuquerque esboça novo ataque. A capa da frieza cai-lhe aos pés. Nada suscita mais medo do que a ausência de memória, e a recordação da morte de Cátia, rapariga do seu distrito, apanha-o com um trovão: “Esta parte por onde desceram ainda está muito verde e não faz sentido deixar uma ilha entre a zona queimada para voltar a arder e matar mais homens. Do outro lado do rio já está tudo ardido e já não há o perigo de pegar neste lado”.
O flanco esquerdo está a progredir para o lado contrário da queimada, e a malta de Sátão vai reforçar a primeira equipa. O terreno, dividido por socalcos, alguns de dois metros, é pior do que o inicial. Márcia cai entre as silvas e levanta-se como um pinto acabado de nascer. Eduardo Silva, 19 anos – para a rapariga o ‘pinchinho’, alcunha que arrasta do mister de seu pai, um picheleiro da zona –, grita aos da frente que cortem o lance.
Ao rapaz, que está na tropa e nas folgas assenta noutro quartel, cabe um dos trabalhos mais pesados: fornecer metros de manga para a frente progredir. Mas, no trajecto entre o carro e a agulheta que anda à bica do rio, é cercado por reacendimentos. Grita, aflito: “Cortem o lance, cortem o lance”. Os outros, com o fogo pelas costas, obedecem e recuam. Eduardo apaga as chamas que o rodeiam com a boca da mangueira, impedindo que a equipa que vai à frente seja apanhada à traição.
Mais acima, quem parou leva com ele pelas trombas. Na espessa escuridão, perde-se a equipa. Luís Albuquerque, o comandante de Castro Daire, tenta orientar. Na encosta, os vapores do chão rescaldado e as brasas vivas fazem-no pular de laje em laje. Os pés parecem bichados pela sarna. O fogo aglomerou-se ao cimo da encosta e o vento enlouquecido levanta numa dança macabra as folhas em chamas dos pinheiros que cruzam o céu numa espécie de cataclismo planetário. Acompanha-se a sabedoria com o receio de que as botas derretam: “Este fogo, no flanco direito, deve ultrapassar os 600 graus centígrados. Não sente o seu primeiro escaldão?”.
Do outro lado do rio, o comandante do sector Bravo, na ponta final do rescaldo, intercede pelos seus homens: “Há doze horas que não comem”. Luís, com as dores dos outros às costas, esforça-se para os acalmar: “Alfa, responde. Já aguentámos tantos sacrifícios, segurem-se mais um pouco que na quarta-feira já começa a chover”.
O bandalho esconde-se, Márcia volta com a equipa e o sorriso sempre à superfície: “É um terreno difícil, muito a pique, mas esta é a nossa vida”. Fintaram-no, recolhem o material, mas mantêm-se de vigilância, não vá o gajo acordar. Passa a adrenalina e recolhem ao carro. Pelas cinco da manhã, Coelho, ao volante, acorda em sobressalto: “Sonhei que o travão estava desengatado e que o carro estava a ir ribanceira abaixo. Joguei de imediato a mão ao travão”.
Há situações que nunca se esquecem na vida.
felicia.cabrita@sol.pt
Coelho saca da mangueira e Márcia engata-lhe a agulheta. Tira-se as medidas à descida vertiginosa. Ao fundo, o fogo dança como um pião ensandecido. A agulheta vai na frente e a bombeira sabe, por experiência própria, que de um momento para o outro, com uma guinada do vento, pode apanhar de caras. Eduardo vai nas suas costas, preparado para a amparar ao primeiro impulso da água quando começar a correr. Os outros seguem o chefe, pela linha de fogo que o encaixe de novos lances faz progredir.
A descer, todos os santos ajudam. Dizem. Márcia agradece a outros seres: “Este trabalho não se consegue fazer sem um bom comandante, que temos, espírito de equipa e confiança uns nos outros. É isso que nos dá força”. É das poucas lições que não se podem subverter. Na descida vertiginosa, não se vê um palmo à frente do focinho, umas vezes um pé atola-se na terra encharcada pelo primeiro rescaldo, outras procura-se uma laje para escapar da sucção da terra e escorrega-se.
Aproxima-se a boca do inferno, as labaredas espaventam com a aproximação e, de repente, a voz do comando manda subir. Com o fogo a querer enrolar-se aos pés, a equipa faz o caminho inverso. Márcia, que ia preparada para o agarrar pelo pescoço, não entende a contra-ordem, e o mau génio sobe como gasosa a rebentar no gelo: “Que é isto? Primeiro mandam-nos descer, agora chamam-nos ao ponto de partida?”.
Ninguém fica pelo caminho. Márcia troca a capa da fragilidade pela musculação de um gigante. Com a mão, empurra a novata pelas partes baixas até se sair do buraco.
A meio da encosta imunda de cinza e brasas, Luís Albuquerque esboça novo ataque. A capa da frieza cai-lhe aos pés. Nada suscita mais medo do que a ausência de memória, e a recordação da morte de Cátia, rapariga do seu distrito, apanha-o com um trovão: “Esta parte por onde desceram ainda está muito verde e não faz sentido deixar uma ilha entre a zona queimada para voltar a arder e matar mais homens. Do outro lado do rio já está tudo ardido e já não há o perigo de pegar neste lado”.
O flanco esquerdo está a progredir para o lado contrário da queimada, e a malta de Sátão vai reforçar a primeira equipa. O terreno, dividido por socalcos, alguns de dois metros, é pior do que o inicial. Márcia cai entre as silvas e levanta-se como um pinto acabado de nascer. Eduardo Silva, 19 anos – para a rapariga o ‘pinchinho’, alcunha que arrasta do mister de seu pai, um picheleiro da zona –, grita aos da frente que cortem o lance.
Ao rapaz, que está na tropa e nas folgas assenta noutro quartel, cabe um dos trabalhos mais pesados: fornecer metros de manga para a frente progredir. Mas, no trajecto entre o carro e a agulheta que anda à bica do rio, é cercado por reacendimentos. Grita, aflito: “Cortem o lance, cortem o lance”. Os outros, com o fogo pelas costas, obedecem e recuam. Eduardo apaga as chamas que o rodeiam com a boca da mangueira, impedindo que a equipa que vai à frente seja apanhada à traição.
Mais acima, quem parou leva com ele pelas trombas. Na espessa escuridão, perde-se a equipa. Luís Albuquerque, o comandante de Castro Daire, tenta orientar. Na encosta, os vapores do chão rescaldado e as brasas vivas fazem-no pular de laje em laje. Os pés parecem bichados pela sarna. O fogo aglomerou-se ao cimo da encosta e o vento enlouquecido levanta numa dança macabra as folhas em chamas dos pinheiros que cruzam o céu numa espécie de cataclismo planetário. Acompanha-se a sabedoria com o receio de que as botas derretam: “Este fogo, no flanco direito, deve ultrapassar os 600 graus centígrados. Não sente o seu primeiro escaldão?”.
Do outro lado do rio, o comandante do sector Bravo, na ponta final do rescaldo, intercede pelos seus homens: “Há doze horas que não comem”. Luís, com as dores dos outros às costas, esforça-se para os acalmar: “Alfa, responde. Já aguentámos tantos sacrifícios, segurem-se mais um pouco que na quarta-feira já começa a chover”.
O bandalho esconde-se, Márcia volta com a equipa e o sorriso sempre à superfície: “É um terreno difícil, muito a pique, mas esta é a nossa vida”. Fintaram-no, recolhem o material, mas mantêm-se de vigilância, não vá o gajo acordar. Passa a adrenalina e recolhem ao carro. Pelas cinco da manhã, Coelho, ao volante, acorda em sobressalto: “Sonhei que o travão estava desengatado e que o carro estava a ir ribanceira abaixo. Joguei de imediato a mão ao travão”.
Há situações que nunca se esquecem na vida.
felicia.cabrita@sol.pt
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